segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Charme especial

     Daniel tem um charme especial para conseguir as coisas. Ele ama ir para a casa da minha avó, não aceita muito bem os finais de semana em que não vai. Quando isso acontece, ele dá um jeito de fazer a vovó e tia Zana mudarem de ideia e buscarem-no em casa. Uma vez, ele ligou para a minha avó dizendo que estava passando fome e sem banho há dois dias. Disse que o pé dele estava grudando de sujeira e que, se ela não o buscasse imediatamente, acabaria parando no hospital de tão doente que ficaria. Ele até chorou. Em quinze minutos, lá estava o carro da vovó em frente a nossa casa. Dentro dele havia um bolo, pão de queijo, caixas de suco, pamonha, duas caixas de ovos (Daniel adora ovos), sanduíches de microondas, miojo, arroz, feijão e farinha (Daniel também gosta de comida pesada), pizza congelada, uma caixa de chocolates e outra de salgadinhos. Na segunda tentativa, não funcionou muito bem, então ele mudou a tática. 
      (...)
       - Aí, Dan, com essa minha câmera eu vou poder tirar muitas fotos suas. O que você acha?
       - Muito legal, tia Zana!
       - E vamos colocá-las no computador e mostrar para todo mundo!
       - Show, tia!
       - Eu vou ser a sua empresária, porque você é artista, né?
       - Sou artista mesmo, tia, faço shows todos os dias...
       - Eu sei disso, meu parceiro, sei disso... Fez show hoje?
       - Não, hoje ainda não, mas vou fazer.
     - Legal, meu sobrinho. Então, a gente vai poder tirar foto com boina, sem boina, com sapato, de bermuda, nadando na piscina, almoçando. Tudo!
       - De tudo, né, tia?
       - De tudo, meu garotão!
       - Pois é, tia, muito legal isso tudo... Mas você não está esquecendo nada não?
       - Não, Dani... Estou?
       - Sim, tia, está.
       - O que?
       - Para a gente tirar esse monte de fotos, você precisa buscar o artista e levar para passar o final de semana aí, né?

      E, novamente, em vinte minutos lá estavam elas.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Más ideias...

       É só no Domingo que eu e Daniel ficamos juntos durante todo o dia. Um Domingo desses, eu e meu namorado resolvemos levar o Dani para sair. Fomos lanchar no shopping.
       - Moça, eu quero aquele ali, o número 1.
       - Opção double cheddar ou salada?
       - Cheddar por favor.
       - Qual será a bebida?
       - Daniel... Milk shake, suco ou refrigerante?
       - Milk shake!
       - Milk por favor.
      Escolhi o mesmo sanduíche e a mesma bebida para nós três, ansiosa e contente, querendo que a vida fosse bela com todos os seres-humanos sendo intimados a provarem aquela maravilha deliciosa. Para que lembrar do fato de que tinha cheddar e de que a comida estava quente?
       Comi como se fosse o fim do mundo, como se o amanhã não mais fosse chegar. Eu me esqueci do mundo a minha volta e apenas senti aquele maravilhoso sabor adentrando o meu paladar... Até que algo me trouxe de volta. Uma voz vinda do além ou de algum lugar por lá. Ela dizia "Eu preciso de um guardanapo, Bruna!". Olhei para o ser que proferiu essas palavras e ele estava laranja.
       O cheddar escorria por entre seus dedos quase como uma serpente gigante dançando em volta de longas árvores. A boca, enquanto fechada, parecia uma caixa de presentes bem enfeitada e com direito a um laço cor de abóbora envolvendo o que tinha por dentro. Ele sorriu. Foi como se todos os dentes tivessem sido cuidadosamente agasalhados para uma longa temporada de inverno.
     Eu devo dizer, estava suja também, mas o Daniel parecia ter mergulhado em uma piscina de queijo derretido. E ele estava achando aquilo tudo o máximo. Claro que estava. Acreditei que seria uma boa ideia pedir que ele tomasse o milk shake para irmos logo ao banheiro lavar aquele carnaval alaranjado. Mas o milk shake não passava pelo canudo. Foi quando eu percebi que a festa tinha apenas começado.
      O Daniel puxava o líquido com toda a força que seus lábios carnudos tinham, mas aconteceu somente o contrário do que nós três esperávamos. O milk shake não subiu, mas o cheddar - vejam só -, o cheddar começou a descer... Daniel não desistiu até que seu copo estivesse devidamente amassado por suas últimas sugadas. Vocês não podem imaginar a sujeira. 
      Com toda a dificuldade imposta pelo milk shake, eu me esqueci do cheddar. O cheddar, vocês devem saber, seca. Quando o cheddar seca, fede. E, quando fede, não sai mais. 
       Não sei calcular quanto sabão eu usei naqueles dedos compridos, mas me lembro de achar que era o suficiente. Até deixei um pouco de espuma, sabe? Só para garantir.
      Fomos, então, andando até o carro, enquanto o Daniel ria e contava (mais de uma vez) para o Vítor a aventura alaranjada que ele já conhecia, afinal estava lá. Eu estava abrindo a porta quando meus balões cor de rosa da tranquilidade foram brutalmente estourados. O Vítor me perguntou:
       - Amor, tem certeza de que você lavou direito as mãos do Dan Dan?
       - Lavei, ué, por que?
      E ele disse as palavras que mudariam nosso estado de espírito, foi algo próximo de:
       - Porque parece que ele pegou em cocô.
    Minha casa fica a quarenta minutos do shopping e os vidros do meu carro não abrem muto. Tivemos a companhia daquele péssimo odor de cheddar por todo o trajeto. Nunca valorizei tanto um ar fresco que eu pudesse inspirar sem morrer. O Daniel ria. Eu tenho certeza de que ele também não aguentava aquelas mãos tingidas sem solução. Mas para que admitir? Passá-las no cabelo da irmã é  bem mais divertido.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Vermelho, cor do amor.

    Eu sei que vermelho é "cheguei" demais, mas vermelho é a cor preferida do Daniel. Se ele conseguisse ler esse blog, certamente exigiria que eu colocasse vermelho em... Tudo. Tudo e ainda mais. O quarto do Daniel é vermelho, as camisas preferidas dele também são e, ano passado, eu lhe dei um All Star vermelho caríssimo - que o sem vergonha nem usa porque está agora com mania de usar sapato social para ir até à padaria.
      Sempre que lhe perguntamos o porquê de gostar tanto de vermelho, a resposta é simples:
      - Ué, porque vermelho é a cor do amor né, Bruna, lógico.
    "Lógico". O Daniel fala "lógico" como se todas as verdades fossem inteiramente, totalmente e particularmente dele. E elas são. A verdade, o sorriso mais bonito e verdadeiro, a voz rachada igual a do Bruno do Bruno e Marrone (Daniel é fã de Bruno e Marrone), o charme de artista (Daniel é artista e faz shows na sala de televisão imitando - e chegando bem perto, eu devo dizer - tudo o que vê no DVD da dupla), a escolha do que será o lanche do dia, o canal da televisão, a roupa com a qual eu vou para a faculdade, a roupa com a qual eu vou para o trabalho, a roupa com a qual qualquer um vai para qualquer lugar. O mundo inteiro pertence a ele. Se ele tem seu próprio mundo, a quem mais poderia pertencer? 
       Daniel é meu irmão. Cinco anos mais velho que eu por fora e cerca de dez ou quinze mais novo por dentro. Ele não tem nenhuma das síndromes conhecidas, não tem autismo ou deficiência física. Dani tem algo como um pouco de cada uma dessas coisas devido a uma "não-oxigenação" do cérebro pouco depois de nascer. Ele fará vinte e quatro anos este ano, mas sua mentalidade (como de todas as crianças especiais) é de uma criança. Às vezes, ele parece ter dez, quinze, doze, setenta, cem anos... 
         Ele é uma caixinha de surpresas.
      Não se sabe o que esperar do Daniel nunca. E esse é o maior presente que alguém poderia ganhar na vida. Ele faz com que os dias de quem convive com ele sejam únicos, mesmo aqueles dias mais monótonos e cansativos. 
      Mas o Daniel, às vezes, é irritante. 
      Eu também sou. 
     Nós nos irritamos juntos, rimos juntos, brigamos juntos (e separados, de vez em quando, também), comemos juntos e, nos finais de semana, ele exige que eu o convide de forma requintada para dormir em meu quarto. Mas faz charme para aceitar.
       - É... Tá bom... Eu aceito dormir lá, tá bom assim? Talvez eu ainda tenha que pensar no seu caso um pouco, mas, se der, eu durmo lá.
      Safado. 
      Cada dia é uma nova experiência com ele e, com isso, cada dia uma nova história.
     O Daniel me fez o ser-humano que eu sou hoje e me mostrou, à maneira dele, que o mundo inteiro deveria ter metade do que ele tem para que comece a se ajeitar.
     Não conhecemos o mundo inteiro, sei disso, mas cada par de olhos que ler os textos sobre o encanto que é o meu irmão já será uma parte dele que passaremos a conhecer. E que passará a conhecer o Daniel.
      Quem sabe assim não se contagiem com o vermelho do amor sobre o qual ele tanto fala.